segunda-feira, 23 de abril de 2012

Rifa-se um coração - LISPECTORIANA

Clarice e Eu



Minha amizade com Clarice é bem antiga, apesar de ela anteceder a mim um bocado!

Sou Lispectoriana. Nossa amizade começou quando eu, ainda adolescente, sem condições de comprar livros, devorava tudo o que me aparecia pela frente ao transitar pelas estantes maravilhosas e encantadoras, de livre acesso, com cheiro de cultura e saber, da Biblioteca Pública Municipal Jorge Miguel Attab. Transitei e me deleitei com romances (Perto do Coração Selvagem, A Paixão Segundo GH dentre outros)e  contos ( O primeiro beijo, Uma história de tanto AMOR, Felicidade clandestina) da autora. Ficamos mais intimas ainda quando no inicio da minha carreira – trabalhando na BPM - pude ter contato imediato, sem restrições, manuseando, organizando, lendo, devorando as obras disponíveis de Clarice. Naquela época o deleite foi completo...  Me encantava aquela mulher misteriosa, de personalidade forte e marcante, que apesar de [...]ousar desvelar a profundeza da sua alma em seus escritos... reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma.” 

(http://www.claricelispector.com.br/autobiografia.aspx).

Acho que de certa forma me identificava com aquela mulher.... Mas algo me escapou nesse tempo todo e... tudo o que passa volta!

Se não me falha a memória, foi na quinta ou sexta feira da semana passada que tive contato com a preciosidade que ora lhes apresento.

Foi muito engraçado pois eu estava muito injuriada para ser suave, a semana transcorreu de forma lamentável e eu estava literalmente exausta!

Cheguei não sei de onde… provavelmente de uma daquelas reuniões intermináveis e irresolutivas e vi que alguém, que não sei quem, havia gentilmente deixado alguns exemplares de uma revista técnica sobre a minha mesa (CouroBusiness). Nem mesmo o cansaço vence a minha curiosidade e sede de saber, principalmente por informações sobre os meus projetos e para aliviar o “stress” e espantar a contrariedade interna, comecei a folhear a revista, daquela forma bem feminina – de trás para a frente obviamente - parei por ali mesmo, na primeira página para mim (última para os leitores normais) quando apareceu saltitante aos meus olhos a palavra RIFA  e na sequencia CLARICE LISPECTOR.

Imediatamente baixei os olhos para a primeira frase: Rifa-se um coração quase novo. Um coração idealista como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.  Opa… pensei, faz tanto tempo que não conversamos e Clarice está me descrevendo!  Será? Isso se parece comigo.

O telefone toca, interrompendo a leitura . Atendo

– Empresa tal, fulana de tal, boa tarde!

_ Oi, é com você que falo sobre….

_ É sim, como posso ajudá-la Senhora …

_ Sabe o que é...Bláblálbla.... e a conversa segue. ...Blábláblá…blá…blá. E eu ouvindo, respondendo até encerrar. Cumprimento ...

_ Boa tarde. Termino a conversa ansiosa para continuar minha leitura …

 

Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um pouco inconsequente e nunca desiste de acreditar nas pessoas.  

Putz, Clarice, converso com ela, você está falando de mim? É, não é? Confessa !

Ela não consegue me responder, não está por perto, nem está mais por aqui...mas é! Interrompo a leitura de novo com a chegada de Isabella com alguns documentos para eu assinar.

-- K… você pode assinar esses documentos para mim e despachar alguns processos que estão na sua caixa? É urgente…

-- OK Isa posso sim, senta ai e não saia enquanto eu não terminar .

Ela que é uma graça de pessoa, super bom astral e sempre pronta a me colocar para cima. Percebeu que estava meio para baixo e  diz…

--- Está tudo bem? Você parece cansada… ( e eu quase choro com a percepção dela. Eu sabia que aquela criaturinha minúscula e bela como o nome iria e vai longe e acho que estou certa). Olho para ela e sinto vontade de contar como foi a semana e conto ao tempo em que digo: Está tudo bem…

Ela diz: -- Ainda bem que já passou, agora você vai descansar.

A conversa transcorre, vou assinando documentos e despachando. Enquanto espera,  ela pega a revista na página que eu estava. Curiosa como eu e muito rápida no gatilho, leu a crônica. Terminamos juntas eu de assinar e ela de ler.

Daí, o inesperado, ou não, para uma criaturainha escorpiana de 18 anos, cheia de idéias e sem restrições para expor suas opiniões ( isso por sinal me lembrou alguém aos 18 anos, há algum tempo atrás).

Ela me olha e solta de sopetão:  Você já leu a esta crônica?

-- Estou tentando digo eu, ainda não consegui terminar.

--- Não gostei , me diz ela.

Admirada com a rapidez  e o senso critico dela perguntei:

-- Porque?

-- É muito triste!!!!

-- ??????.

Terminamos, ela se foi e me deixou em uma situação difícil. Entre a fidelidade à minha amiga de longa data ( que eu achava que estava me descrevendo) e a visão diferenciada da pirralha me vi obrigada a resignificar a percepção de mim mesma. Diante disso resolvi , já com outros olhos, concluir a leitura.

Rifa-se um coração que nunca aprende. Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural.

Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar.

Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras.

Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, briga, se expõe. Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos.

Este coração tantas vezes incompreendido.

Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que quando parar de bater ouvirá seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas: “O Senhor pode conferir”, eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento.


 

Ao chegar nesta parte, comecei a entender o pensamento de Isa. É natural  Clarice, que uma menina à flor da idade, cheia de vida e otimismo se choque com uma constatação dessa magnitude. Constatar que, ao longo da vida, embora a gente tente fazer tudo certo, muitas vezes falha ao agir com emoção, ao colocar sentimentos é assustador  – o pragmatismo sem sombra de dúvida é muito mais seguro.

Continuando…


 

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. Um órgão mais fiel ao seu usuário. Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconseqüente.

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que, ainda não foi adotado, provavelmente por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo.


 

Neste ponto pensei… Como Clarice podia descrever exatamente meus sentires? Mas concordei com Isa… apesar de sentir exatamente isso que você está descrevendo, Clarice, não estou rifando meu coração. Posso gentilmente oferecê-lo, com muitas dessas nuances que você descreveu… Mas rifar não... Isabella tem razão...isso realmente é muito triste,

Mas ai… Clarice concorda comigo e resolve ofertar o coração, pena que ao oferecê-lo o desmerece tanto... o coração que se dá tem tantas ou mais qualidades do que aquele que se rifa...


 Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano. Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e, a ter a petulância de se aventurar como poeta.


 

Querida Clarice, obrigada pelas belas palavras, com certeza me vi em muitas delas meu coração é tudo isso mesmo, você está certa. Mas..olhando com olhos de Isabella, entendi que antes que rifar meu coração, esse coração que nunca aprende, que bate acelerado só de pensar no amor que traz dentro de si, que assim como o seu não endurece, que mantém viva a esperança de ser feliz, que mantém o sonho e o delírio de algum dia bater juntinho àquele peito pelo qual suspira, antes que rifar esse coração querida amiga, prefiro oferecê-lo mais uma vez com carinho, com suavidade e AMOR.

E ainda que seja o meu também, um coração insensato, que comanda o racional, ainda que seja um coração apaixonado ele continua inocente, sem armaduras, simples e natural. E sim, continua também insistindo em cometer os mesmos erros esse coração, saí do sério, se arrepende depois, se recolhe, encollhe, provavelmente por se recusar  assim como o seu a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo, por não querer invadir, desrespeitar.

Sob esse novo olhar, é puro  doação o meu coração, que já escolheu seu tomador!



 

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